Publicado em 9 de Junho de 2016 às 15:59
Foto: Elisa Cotta
Texto: Cibelih Hespanhol
Durante os dias 06 e 07 de junho, representantes do Fundo Brasil de Direitos Humanos estiveram no Norte de Minas Gerais conhecendo as realidades das comunidades beneficiadas pelo projeto “Consulta comunitária e direitos territoriais de comunidades tradicionais geraizeiras”. Iniciado em 2014 dentro do edital de litigância estratégica do Fundo Brasil, o projeto tem como objetivo apoiar comunidades que vem se articulando contra a expropriação territorial promovida por empresas de eucalipto e de mineração nas regiões de Grão Mogol e Alto Rio Pardo de Minas.
Logo na segunda-feira pela manhã, representantes do Fundo Brasil e do CAA/NM, executor do projeto, tomaram a estrada rumo a Vale das Cancelas. Pelo caminho, as monoculturas que invadem e degradam territórios geraizeiros foram motivo de espanto: “eu nunca tinha visto tanto eucalipto na minha vida”, afirmou Taciana Gouveia, representante do Fundo Brasil. Na comunidade geraizeira, o grupo foi recebido por lideranças e logo explicou o motivo da visita: “nós viemos conhecer o trabalho e a luta de vocês. Queremos entender qual é a perspectiva geraizeira”.
Os oito geraizeiros reunidos representavam as comunidades de Vale das Cancelas, Batalha, Cabeceira de Macaúbas e Lamarão. Aos poucos, a conversa sobre sua vivências, identidades e memórias despertou em todos a lembrança de como eram as comunidades antes da monocultura de eucalipto – tempo de fartura de frutos, pés descalços no chão, brincadeiras e cantigas. “O povo era festeiro, todo dia tinha roda. Ninguém ficava doente porque na comunidade tinha quem sabia usar plantas medicinais. Mas tivemos um processo de aculturação, quando a monocultura veio nos anos 70, e vieram religiões que diziam que o que o geraizeiro fazia era pecado. Hoje a gente tem notebook, essas coisas, e esquece que antes era boneca de pano e de milho”, lembrou dona Lourdes da Chapada, como gosta de se apresentar, reforçando a necessidade de resgatar a cultura que dá identidade e orgulho a todos.
Ao todo, a região de Vale das Cancelas abrange 27 comunidades e 1900 famílias, que vivem hoje impactadas pelas empresas Suzano, Floresta Empreendimentos, Grupo Plantar, além de projetos da Sul Americana de Metais e Vale do Rio Doce. Estas comunidades tem seus direitos humanos, econômicos, sociais e culturais violados desde os anos 70, quando as primeiras empresas de monocultura chegaram à região como parte do projeto desenvolvimentista da época, e invadiram as chapadas dos Geraes, onde, tradicionalmente, viviam os geraizeiros, obrigando as comunidades a viverem nas grotas. Esta é a forma de expropriação territorial por “encurralamento”, que desestabiliza completamente as dinâmicas e práticas tradicionais. Estudos apontam que, só na comunidade de Vereda Funda, o território tradicional foi reduzido a 17% de sua area total, o que prejudica o acesso a recursos naturais, criação de gado e extrativismo por parte dos geraizeiros.
“Antes da monocultura chegar, a vida era melhor", ressaltou seu Valdivino Rodrigues, da comunidade de Vale das Cancelas. "O gado era criado na solta, não tinha divisa. Quem veio com divisa e grilando nossas terras foi a monocultura de eucalipto”.
Durante o encontro com o Fundo Brasil, todos geraizeiros se lembraram com nostalgia da abundância de frutas regionais do Cerrado, como cagaita e pequi, do uso de plantas medicinais para curar os doentes nas comunidades, da prática de caça de animais de pequeno porte. Era comum cultivarem suas pequenas plantações de mandioca, café e cana, garantindo o auto sustento e a segurança alimentar das famílias.
A consciência de que este modo de vida era especial, típico das comunidades tradicionais e característico dos geraizeiros, veio a partir de oficinas sobre direitos territoriais realizadas em 2012 numa parceria entre GESTA/UFMG, CAA/NM e Articulação Rosalino. Mas as oficinas apenas embasaram o que todos já sabiam pela própria experiência, como sustentado por seu Valdivino: “A gente sabe que é tradicional faz alguns anos, mas já vivia daquele jeito, então sempre foi”.
Esta identidade coletiva, partilhada por histórias e ancestralidades comuns, é assumida pelos geraizeiros como um motivo para a luta. “Foi a partir do processo de luta, das demandas da justiça, que a gente foi entendendo o que era ser geraizeiro e qual a importância disso”, explica Orlando dos Santos, do Movimento Geraizeiro. Organizado há dois anos, hoje o movimento é a principal forma de organização e reivindicação dos direitos destas comunidades tradicionais. Muitos de seus integrantes sofrem, como retaliação à ousadia de lutar, ameaças de agressão e morte.
Boa parte deste processo de auto reconhecimento e acompanhamento jurídico da luta dos geraizeiros foi realizado através do projeto “Consulta comunitária”, que organizou assembleias de auto declaração, demarcação de territórios e ações de advocacy. Ao final do encontro, representantes do Fundo Brasil reforçaram o protagonismo dos geraizeiros em sua própria luta, e perguntaram, como conclusão, o que desejam as comunidades organizadas no movimento. A resposta veio afiada como uma faca: “Nós queremos a demarcação dos nossos territórios, para plantar e cuidar”. “E se vocês tivessem esse território agora, o que fariam?”. “Festa”.
Postado por: Cibelih Hespanhol Torres
Editado por: Cibelih Hespanhol Torres