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Agricultura tradicional não é coisa do passado

Publicado em 2 de Junho de 2016 às 14:00

Agricultura tradicional não é coisa do passado

Texto: Carlos Alberto Dayrell*, na Carta Maior

 

O desenvolvimento industrial da sociedade contemporânea vem colaborando para a visão de uma agricultura que se distancia mais e mais da natureza no imaginário das populações urbanas. Contribui com esta visão a tendência da concentração da população em um número reduzido de cidades (megalópolis) e o fato da agricultura estar se deslocando como um apêndice crescentemente subordinado ao setor agroindustrial, onde os alimentos são mais e mais processados industrialmente, difícil até de serem imaginados como produtos oriundos do mundo natural. Contribui também, a interação dos circuitos de comunicação em escala global, cuja grande maioria encontra-se articulada com o modus vivendi urbano-industrial, imbuídos da ideia de uma natureza dessacralizada, onde os populações rurais que vivem e produzem em um relativo equilíbrio com a natureza foram taxadas de primitivas ou inferiores.

Mas não foi sempre assim, como ainda não é assim em vastas regiões do globo. Embora os Países do Norte tenham disseminado em larga escala um modelo de agricultura industrial (1) (concentrador e homogeneizador por natureza) com a retórica de afastar o sombrio fantasma da fome no mundo moderno, diversos estudiosos estimam que nos nossos tempos 45% da população mundial vivem em grupamentos humanos envolvidos nas atividades básicas de apropriação direta de bens e serviços que oferece a natureza, entre estes a agricultura. É um dado que contrasta com a realidade dos países desenvolvidos onde apenas 5% da população encontra-se diretamente envolvida em atividades agrícolas.

Se na sociedade industrial contemporânea é apenas uma pequena fração que se defronta diretamente com o meio natural nas atividades produtivas primárias, nos países do chamado Terceiro Mundo, esta população abrange cerca de 60% do total. Constitui uma sociedade diversa, composta de populações tradicionais e modernas, cuja maioria é de camponeses e indígenas que ainda mantêm seus processos produtivos com base no uso de insumos locais e no aproveitamento intrínseco das potencialidades dos ecossistemas circundantes. Nestas sociedades, estas atividades são realizadas pela maioria de seus membros. E, este defronte, não é um processo homogêneo e único. Pelo contrário, é diverso e diferenciado. Intimamente influenciados por fatores culturais e ecológicos que mediam e condicionam, em uma maior ou menor medida, a articulação com o modo de produção dominante – o capitalismo.

A diversidade cultural no planeta, associada principalmente com as atividades produtivas primárias, é destacada por diversos autores. Estima-se existir mais de 6.000 diferentes grupos tradicionais de acordo com a estratificação baseada apenas no critério linguístico . Se olharmos a Figura a seguir podemos visualizar a distribuição desta diversidade cultural, onde o Brasil entra com 210 etnias linguísticas de um total de 410 da América do Sul.

Se incorporarmos as populações e culturas tradicionais não indígenas, consideradas, de uma forma geral, como “camponesas”, e que, hoje, correspondem entre 50 a 60% do total da população rural dos países do Terceiro Mundo (Toledo, 1996:31), esta diversidade cultural se estenderia como um complexo ainda mais considerável.

O Contexto Brasileiro

Analisando a agricultura brasileira vemos, em um primeiro momento, a partir da ocupação colonial portuguesa, o desenvolvimento da agricultura em sistemas de plantation, iniciada com o ciclo da cana na região nordeste, em seguida pelo café, que perdura até o processo de industrialização iniciado nos anos 1930. O que caracteriza a agricultura desse período é uma produção destinada a abastecer o mercado externo, que convive, mesmo que à margem e sem políticas específicas, com a produção destinada ao abastecimento do mercado interno, esta realizada em grande medida pela agricultura camponesa que se desenvolveu nos interstícios da sociedade brasileira. Agricultura que surge de formas diversas junto com o processo de ocupação colonial, absorvendo, de forma significativa, a tradição indígena associada com a portuguesa e, em seguida, a tradição dos negros das costas africanas. Que se enriquece ainda mais com a imigração europeia e japonesa estimulada pelos governos no final do século XIX e início do século XX.

Com o advento do processo de industrialização, iniciado nos anos 1930, e sem reformulações na base produtiva de alimentos, a década de 1950 passa a ser palco de um grande debate sobre os rumos de um modelo de agricultura que atendesse à crescente demanda por alimentos junto aos centros urbanos que se industrializavam rapidamente. A falta de políticas específicas destinadas àqueles que tradicionalmente eram os principais responsáveis pela produção de alimentos no Brasil, associada com o processo de industrialização, levou a uma migração para as cidades de um grande número de moradores que até então viviam nas zonas rurais ou em pequenos núcleos urbanos do país. Abre-se então um grande debate acerca de políticas que estimulassem a permanência dos lavradores na terra e o concomitante aumento da produção de alimentos. O debate se polariza: de um lado, os defensores de reformas mais profundas na sociedade que promovessem a democratização do acesso à terra, à educação, do sistema de remessa de lucros dos bancos para o exterior; de outro lado, os setores oligárquicos do latifúndio que, resistentes em abrir mão de seus direitos sobre as terras, se associam com os interesses do capital internacional que passaram a dominar a agricultura de base industrial, desenvolvida principalmente pelos Estados Unidos e que deu origem à chamada Revolução Verde.

O Golpe Civil Militar ocorrido em 1964 sufocou pelas forças das armas o debate. Impôs-se então um conjunto expressivo de políticas reformulando o sistema de pesquisa, educação e de fomento à modernização da agricultura com créditos e assistência técnica subsidiados pelo Estado. Estímulo que possibilitou uma modernização em escala ampliada dos antigos latifúndios como empreendimentos agropecuários capitalistas, em detrimento da agricultura camponesa tradicional.

Denominada de “modernização conservadora”, a política que foi desenvolvida a partir de então levou ao extremo a dicotomia produção dissociada da conservação. Essa opção tem como base de sustentação uma agricultura sob domínio dos complexos agroindustriais associados aos conglomerados financeiros. Uma estrutura de produção e consumo que busca subordinar aos seus interesses, de forma truculenta, todos os territórios do planeta. Uma sobre-exploração dos recursos e de degradação do ambiente resultado de uma racionalidade econômica que separa a natureza do campo da produção. E que vem desencadeando um dos maiores problemas políticos e econômicos de nosso tempo: a destruição dos recursos naturais e na degradação do meio ambiente em uma escala global como resultado do processo de reprodução do capital em uma escala nunca vista anteriormente. Onde uma das consequências visíveis mais dramáticas é a degradação do equilíbrio climático global que ameaça a vida humana no planeta.

Ameaçando levar a uma desestruturação quase que total dos sistemas naturais responsáveis pela manutenção da vida no planeta, o que norteia a sua lógica é a negação completa do outro, no caso os intricados e complexos sistemas camponeses que persistem e ainda são os principais responsáveis, no Brasil, pela produção de alimentos e pelo emprego de mão de obra no campo, conforme nos informa a recente divulgação dos dados do censo agropecuário realizado em 2006.

É neste contexto que vimos emergir no Brasil os grupos etnicamente diferenciados, englobados pelo conceito de povos e comunidades tradicionais. Povos que têm uma longa história, por um lado, de dominação, descaso e exclusão e, por outro lado, de afirmação de sua identidade e de luta por direitos sociais, principalmente pelo território. Desde o período colonial da história brasileira, foram construídas estratégias de apagamento da identidade, da cultura e do sentido de pertencimento a um território, para os povos indígenas, africanos escravizados e para a grande maioria do campesinato brasileiro, repercutindo de forma significativa em suas economias. A resistência histórica desses povos a esse apagamento, através da luta, da fuga e da invisibilização, possibilitou a demarcação de alguns territórios indígenas e a formação de comunidades camponesas com tradições culturais diversas, entre estas as comunidades negras que povoaram o Brasil com a constituição de milhares de quilombos.

A paisagem agrária brasileira expressa uma rica sociobiodiversidade onde povos e comunidades tradicionais como indígenas, quilombolas, seringueiros, ribeirinhos e vazanteiros, retireiros, quebradoras de coco, geraizeiros, campineiros, apanhadores de flores sempre-vivas, fundos e fechos de pasto, pescadores, pomeranos, entre outros ainda manejam e conservam uma gama significativa de espécies e variedades da fauna e flora, cultivadas e silvestres, utilizadas na alimentação, medicina, fonte energética, fibras, tanto para o abastecimento familiar e comunitário quanto para a comercialização em diversos mercados locais, regionais, nacional e mesmo internacional. Constituem-se como verdadeiros guardiões da (agro)biodiversidade, porém, até o momento, praticamente à margem das políticas que reconheçam os seus territórios e suas estratégias tradicionais de convivência com os ecossistemas.

O processo de modernização da economia brasileira significou para estes povos e comunidades um violento processo de ruptura e de degradação de suas condições de vida, nos sistemas de produção e no domínio territorial. A luta desses povos por seus direitos ganha legitimidade na atualidade a partir do reconhecimento da sua contribuição como formadores do patrimônio cultural da nação brasileira e da valorização do saber tradicional no manejo sustentável dos diversos ecossistemas nacionais.

E que negação é esta que sempre se atualiza e das formas as mais perversas? Nega-se a persistência de sistemas tradicionais que têm em comum uma racionalidade regida por outra lógica que não a capitalista. Ao mínimo questionamento aos seus interesses, são atingidos de forma furiosa, como o que vemos constantemente na mídia pela violência junto aos índios, aos sem-terra, aos quilombolas e outras comunidades tradicionais que lutam pelos seus direitos de existência; ou no congresso nacional, nos parlamentos e governos estaduais, capitaneados pela bancada ruralista, a fazerem uma defesa intransigente do agronegócio. O golpe contra a democracia ocorrido recentemente, neste dia 13 de maio de 2016 e que resultou no afastamento temporário da presidenta Dilma é mais um exemplo desta negação.

Segundo Edgardo Lander, o que está em curso é uma ação civilizatória, modernizadora, dos portadores de uma cultura que se acha superior, onde os outros ou são primitivos ou atrasados: “aniquilação ou civilização imposta” definem, destarte, os únicos destinos possíveis.

*Carlos Dayrell é engenheiro agrônomo e pesquisador colaborador do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA-NM). Possui mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável (UIA- ESPANHA) e atualmente é doutorando em Desenvolvimento Social - PPGDS / UNIMONTES.



(1) Os países do norte, aqui entendidos como os países do primeiro mundo, considerados desenvolvidos, que viabilizaram a difusão em escala planetária dos pacotes tecnológicos oriundos da Revolução Verde.


Postado por: Cibelih Hespanhol Torres