Publicado em 4 de Abril de 2018 às 16:44
Por Indi Gouveia e Fernanda Cruz
Seja pelo excessivo consumo das grandes indústrias, da má gestão de recursos naturais ou da poluição de rios e destruição de nascentes por parte do agronegócio e monoculturas, o tema da água tem sido uma questão central e o seu debate crescido nos últimos anos na medida em que o estresse hídrico tem aumentado no mundo.
Por mais que essa crise venha se agravando, quem tem mais sentido os efeitos da falta desse recurso são as populações que encaram a água como um bem comum. “Estamos discutindo um tema que é mais caro para os mais pobres e que afeta de forma muito distinta as diferentes classes sociais”, explica o pesquisador Sergio Sauer, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, que defende que a água precisa ser encarada a partir de um debate político: “A sede é que nos fez perceber a importância de um bem tão fundamental. Esse deve se transformar em um tema essencialmente político, e não motivado por processos naturais de escassez e apropriação legal e ilegal”, afirma.
O entendimento parte da discussão de que a água é um bem indispensável para a vida, não apenas para matar a sede, mas também para produzir alimentos, cuidar dos animais e garantir a manutenção da biodiversidade. Essa foi uma das temáticas abordadas durante o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), que aconteceu em Brasília, entre os dias 17 e 22 de março.
O FAMA se propôs a discutir a água a partir da perspectiva dos povos e comunidades tradicionais, movimentos e organizações sociais, se contrapondo ao Fórum Mundial da Água (FMA), que aconteceu no mesmo período e refletiu objetivos de grandes corporações que violam os direitos de acesso à água utilizando esse bem como fonte de negócio.
Durante o evento aconteceram diversas discussões sobre o uso da água no Brasil e do mundo, a partir do convite da Articulação Suíça de Agências de Cooperação da Sociedade Civil, formada por organizações como a Hilfswerk der Evangelischen Kirchen Schweiz (HEKS/EPER), Conselho Nacional de Igrejas, Christian Aid, entre outras. Representantes de organizações nacionais e de países como Honduras, Moçambique, Índia, Suíça e Alemanha trouxeram o tema em debate e colocaram a importância do papel das políticas públicas nas ações efetivas de uso desse bem vital.
O ministro da embaixada da Suíça Niculin Jäger explicou que é preciso tomar medidas a longo prazo para garantia do acesso à água pela população e que medidas como engarrafamento líquido para comercialização, além de não serem acessíveis, produzem lixo e consomem muita energia. “Quero destacar que todos temos que ser conscientes de que a água é a principal condição da existência humana, então acho que um encargo da política deve ser garantir o acesso da água para cada indivíduo. Já que a água é a base da vida, a política tem a responsabilidade de proteger esse recurso”, afirma o ministro ao compartilhar a experiência suíça na gestão da água: “Na Suíça, os municípios tratam da distribuição e curso da água potável para cada unidade domiciliar, assim como se ocupa da purificação dos esgotos. O objetivo deve ser proteger o ciclo das águas com o menor número possível de efeitos colaterais, sem gastar as reservas de água e sem polui-la com pesticidas ou outros tóxicos. Uma exploração sustentável e soluções de longo prazo que protejam a matéria prima são necessários não só no nível nacional, mas sobretudo no nível internacional”, disse Niculin, durante fala de abertura no espaço “Água como direito e bem comum da humanidade”.
Para Vicente Puhl, diretor da HEKS Brasil, promover espaços de debate entre as diversas organizações que trabalham pelo mundo, a fim de superar a escassez da água, é uma forma de enfrentar e identificar as verdadeiras causas dos problemas hídricos. “Na avaliação das agências de articulação da Suíça percebe-se que é muito oportuno a gente promover um debate com o conjunto das organizações. Pensamos que é importante que as organizações brasileiras entrem em um diálogo internacional”, explica Vicente. Para ele, o debate também fortalece a compreensão do papel das comunidades tradicionais na defesa da água: “Muitas vezes, a gente só olha a macroeconomia viabilizada pela grande produção agrícola, intensiva, extensiva e muito tecnificada, com práticas de uso de insumos químicos, fertilizantes artificiais. Isso é o que sociedade valoriza, deixando de enxergar, por exemplo, que um território de uma comunidade tradicional acaba sendo uma produtora de água que beneficia o conjunto da sociedade”, completa Vicente Puhl, ao justificar a importância do fórum em estabelecer um debate com a sociedade.
Muhammed Muteawa, integrante da Via Campesina Internacional e membro da Federação do Trabalho Agrícola da Palestina explicou a situação da crise hídrica sofrida na Palestina, em especial na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. “A crise da água na Palestina é uma crise fabricada. É um assunto político, em um dos países em que chove todo ano e não deveria lidar com falta de água”, garante Muhamed. “A primeira responsável por essa crise é a ocupação israelense, que controla as fontes e os recursos da água”, completa, indicando a origem do problema.
PROBLEMAS LOCAIS, DESAFIOS GLOBAIS
Se por um lado a compreensão política de que a água é um bem público e deve ser gerido a partir de iniciativas locais, as trocas de experiências e relatos dos desafios evidenciaram durante o FAMA que o capitalismo, por não ser uma realidade local, vem favorecendo a privatização da água.
Segundo Lisa Krebs, do projeto The Swiss Blue Communities (Comunidades Azuis), a apropriação da água pelas grandes indústrias é algo que precisa ser reconsiderado mundialmente. “Nos últimos 15 anos, mais de 235 cidades tentaram reaver a propriedade da água e seus serviços, tentaram ter a água de volta para eles, e isso, para mim, é um sinal claro de que a parceria com o setor privado é algo que precisa ser revisto cuidadosamente”, explica.
A experiência das Comunidades Azuis foi uma das alternativas que apresentadas no FAMA, que mostrou como o enfrentamento da privatização da água pode ser feito. Essa iniciativa foi criada por causa da privatização da água no Canadá, com o intuito de, a nível local, sensibilizar as pessoas sobre essa questão que causa tantas consequências danosas e ruins.
Luis Muchanga, da União Camponesa de Moçambique (UNAC), explica que participar das discussões contribui na tentativa de criar uma convergência de diferentes estratégias de lutas de construção de um processo alternativo ao modelo global de desenvolvimento, a partir das experiências das localidades que, apesar de distantes, enfrentam as mesmas dificuldades. “A nossa participação no FAMA nos dá uma oportunidade ímpar de podermos partilhar e percebermos quais são as nossas lutas, que a princípio pensávamos que eram apenas lutas nacionais, mas do ponto de vista real são lutas globais. Aqui estão diferentes movimentos que enfrentam as mesmas problemáticas que temos, como a questão da água que está sendo mercantilizada e se tornando um bem privado, impedindo que as famílias camponesas e as comunidades possam ter acesso a esse recurso básico”, afirma.
Outras experiência apresentada foi a da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA Brasil), que trabalha com ações de convivência para garantia de acesso à água a comunidades da região semiárida nos períodos de estiagem, que nasceu em 1999 a partir da luta da sociedade civil, transformando a estatística de 1 milhão de mortos a 5 milhões de pessoas com acesso à água de qualidade.
OUTRAS FORMAS DE PRODUÇÃO E CUIDADO COM ÁGUA
O uso de agrotóxico, a grande quantidade de água usada para a produção agrícola, exploração de grandes empreendimentos, como hidroelétricas, monoculturas e mineração, foram alguns dos pontos denunciados durante o FAMA.
“Precisamos mostrar para toda a sociedade que é preciso debater e olhar o tema da água não apenas na perspectiva da escassez e das mudanças climáticas. É preciso entender que tudo que está ocorrendo em torno da água, inclusive essa disputa de narrativa, tem interesses econômicos por trás. Precisamos repensar, por exemplo, o nosso modelo de produção, pois o agronegócio não concentra apenas terra, mas também água, que muitas vezes, mesmo que indiretamente, é tirada das comunidades”, explica Valquíria Lima, coordenadora da ASA Brasil.
O economista e pesquisador Sergio Schlesinger explica que esses sistemas de produção tentam se justificar na sociedade a partir de um discurso de desenvolvimento, que coloca as famílias rurais em situações de risco. “A produção na base de monocultura é tremendamente desempregante, pois quanto mais ela cresce menos o emprego no campo existe e isso até explica a população dos campos levadas para cidade sem nenhuma condição de infraestrutura”, afirma. Schlesinger ainda explica que no Brasil há 173 milhões de hectares ocupados por mais de 200 milhões de cabeças de gado, mais bois do que habitantes humanos, o que representa um alto índice de uso dos recursos hídricos que são exportados virtualmente e que precisam ser considerados.
O Brasil é um dos maiores exportadores de água virtual do mundo, isso significa que ao exportar grãos, alimentos, carnes e outros itens, exporta também um grande volume de água contido nos produtos. Iulia Dolganova, da Universidade Técnica de Berlim, explica que, por exemplo, para se tomar uma xicara de café, se gasta 130 litros de água. Para a pesquisadora saber informações como essa alerta a população mundial sobre o tipo de produto que estão consumindo, e é uma das atitudes que podem fazer a diferença no cuidado com água. “Se cada pessoa, ao jogar uma maçã fora, pensar que está também desperdiçando uma quantidade muito grande de água, isso poderia ser um passo. Outra atitude é a compra de alimentos sazonais, quando se compra um alimento não sazonal você está forçando uma irrigação e o uso de outras tecnologias. Essas são duas pequenas medidas que se cada um de nós pudéssemos adotar fariam uma grande diferença”, conscientiza.
FÓRUM MUNDIAL DA ÁGUA
Além da participação intensa no Fórum Mundial da Água, a HEKS - Hilfswerk der Evangelischen Kirchen Schweiz e parceiros, promoveram no Fórum Mundial da Água (FMA) espaços de contraponto aos grandes empreendimentos econômicos que participavam do evento.
O FMA, que vem sendo tratado como o fórum oficial, logo na abertura evidenciou o lado que defendia. Durante a abertura, o presidente do Brasil, Michel Temer, destacou a importância de projetos como a transposição do rio São Francisco, que até o momento custou quase R$ 10 bilhões, e que após 13 anos de obras se evidencia como mais uma alternativa que tem como finalidade beneficiar os grandes produtores.
“Esse é um pensamento equivocado porque, em primeiro lugar, seca não se combate, se convive com ela. Em segundo lugar, há muitos anos que o povo do Semiárido vem demonstrando que a partir da estratégia de estocagem de água, alimento e sementes crioulas, é possível viver bem na região. Essa afirmação de Temer nos remonta aos anos 1970 quando milhares de pessoas morriam em decorrência da seca e da fome porque as políticas públicas era todas voltadas para quem tinha terra e poder. Estamos no final de um longo período de seca, considerada uma das piores dos últimos 30 anos e ninguém morreu por conta dela. Com certeza isso não é mérito da transposição”, rebate Valquíria Lima, da ASA.
Durante a participação da ASA no Workshop Água como Bem Comum, no Pavilhão Suíço, Leninha Alves de Souza, coordenadora da ASA, apresentou a experiência da articulação e denunciou ações, que como essa da transposição, ameaçam o Cerrado: "Estamos aqui para denunciar que o modelo vigente, baseado no agronegócio, vem destruindo o Cerrado, nosso berço das águas e, consequentemente, prejudicando o Semiárido, a exemplo do que vem ocorrendo com o rio São Francisco", disse Leninha. Ela também lembrou da luta das mulheres de São Lourenço, em MG, contra a Nestlé, que aconteceu no mesmo período. "A água é um bem comum e como tal não pode ser privatizada, mercantilizada, tampouco envenenada", defendeu.
No espaço também foi evidenciada a importância de ir contra a privatização dos recursos hídricos. “A água é um bem comum, ele é público, as pessoas de comunidades locais perceberam que se a água for gerenciada pelo capital, você não vai conseguir atingir a missão social. Esse é o motivo para que haja uma grande mobilização querendo trazer de volta esse serviço para as mãos públicas”, defendeu Satoko Kishimoto, da Transnational Institute.
CONHECENDO AS REALIDADES DE PERTO
Em parceria com o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA-NM) e o Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental da Universidade Estadual de Montes Claros (NIISA), a agência de cooperação suíça HEKS/EPER promoveu espaços no interior de Minas Gerais para que parceiros suíços, alemães, hondurenhos e de outras regiões do país pudessem vivenciar de perto a realidade de desafios com a água.
A primeira parada, após os Fóruns, foi em Montes Claros, onde aconteceu no sábado (24/03) o seminário “Água como direito e bem comum”, que teve como objetivo debater a situação de crise hídrica no Norte de Minas e Jequitinhonha e socializar boas práticas de gestão da água no semiárido, em Honduras, Canadá e Alemanha.
Após o seminário, a comitiva com representações nacionais e internacionais, com a presença de parceiros como Pão para o Mundo (Brot für die Welt), embaixada da Suíça, FIAN Brasil, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Vecinos Honduras, entre outras, se dividiram e seguiram para visitas de campo realizadas na cidade de Buenópolis e Rio Pardo de Minas. O objetivo da atividade foi de verificar a situação da água na região do Norte de Minas e Vale do Jequitinhonha, a partir de socialização das comunidades sobre o cuidado com os recursos naturais e a luta pela manutenção dos territórios tradicionais.
“Nós tomamos este primeiro passo, por meio do convite aos nossos parceiros, a se sentarem juntos e partilharem suas experiências e a tornarem visíveis os problemas acerca das plantações. Depois disso, todos vamos para casa, para nossos países, e lá também estaremos sensibilizando essa visibilidade sobre o problema”, diz Andrea Müller, da organização Pão para o Mundo ao explicar os próximos passos a serem tomados após a visita.
Após conhecerem as realidades locais, as comitivas se encontraram em Belo Horizonte, onde em diálogo com gestores estaduais, os visitantes relataram suas percepções sobre a realidade regional e apresentaram sugestões e propostas de intervenção.
Vídeo produzido por Indi Gouveia: https://youtu.be/pXKgBeg7RME
Postado por: Paula Lanza Barbosa
Editado por: Paula Lanza Barbosa