Nas ilhas e barrancas do rio São Francisco e nas margens de outros grandes rios que existem no norte de Minas existem os vazanteiros. Estudando localidades nas áreas inundáveis das margens e ilhas sanfranciscanas, Luz de Oliveira (2005) afirma que os vazanteiros se caracterizam por um modo de vida específico, construído a partir do manejo dos ecossistemas sanfranciscanos, combinando, nos diversos ambientes que constituem o seu território, atividades de agricultura de vazante e sequeiro com a pesca, a criação animal e o extrativismo, numa perspectiva transumante. O ciclo natural do rio: seca, enchente, cheia e vazante - sempre possibilitou a essas populações o acesso a terras periodicamente fertilizadas pela matéria orgânica ou “lameiro” depositado em longas extensões das suas margens e nas ilhas; além de um farto suprimento de peixes que se reproduziam nas lagoas marginais. Nas grandes cheias do São Francisco, segundo relatos de viajantes do século XIX apresentados por Pierson (1972), as áreas planas das margens, principalmente no trecho médio da bacia, ficavam cobertas por camadas de água de um metro e meio a três metros e a inundação atingia até dez quilômetros de largura, a partir da calha do rio.
A formação cultural dos vazanteiros, além de legados da cultura indígena e da cultura negra, recebe influências da vida social ribeirinha de todo o rio São Francisco, particularmente no período de intensa mobilidade propiciada pela navegação rumo ao nordeste brasileiro. Segundo Neves (1998, citado por Luz Oliveira, 2005), não se pode perder de vista a existência de componentes culturais comuns ao homem do médio São Francisco e aos nordestinos de um modo geral. Esta autora cita a linguagem e a literatura popular, os hábitos alimentares e medicinais, como legados das migrações para a integração cultural dessa população.
Em períodos de grandes enchentes as casas são abandonadas, quando o rio cobre as ilhas, inundando a beira do rio, o barranco e as lagoas criadeiras. É para as caatingas e em outras situações para os cerrados, que os vazanteiros migram para se protegerem dos ciclos de enchentes. Levam consigo, quando possível, mantimentos e alguns objetos como colchões, vasilhas e roupas, além das criações. Pesca-se em toda parte. Com o recuo das águas das enchentes, formam-se “alagadiços” e pequenas lagoas em toda a beira-rio. Com o abaixamento do nível da água e a desconexão com a calha do rio, os peixes ali depositados viram presa fácil – são formados inúmeros pesqueiros.
O processo recente de ocupação da região por grandes fazendas, além de restringir o acesso dessa população ao território tradicional, põe em risco as lagoas e a reprodução dos peixes. São inúmeros os caso de lagoas que foram drenadas para plantio do capim “bengo” e capineiras. A extensão e proporção dos impactos é de tal brutalidade que, o que se registra é uma redução drástica da oferta de pescados em toda a região.
Os sistemas de classificação e uso dos recursos estão presentes no seu modo de vida e são noções fundantes que demarcam seu território e definem as formas diversificadas de apropriação do mesmo. Para Luz de Oliveira (2005), os sistemas classificatórios integram o patrimônio cultural dessas populações. Sua argumentação baseia-se em conversas com os vazanteiros, com quem conviveu durante período de coleta de dados. Segundo eles, ocorriam múltiplos usos e formas de apropriação do ambiente, o que garantiu uma vida farta até a década de 1960, quando a situação começou a mudar drasticamente, com restrições cada vez maiores de acesso aos recursos. A reprodução agro-alimentar dos vazanteiros se apoiava em estratégias sensíveis e combinadas de manejo dos três complexos – terra-firme, rio e ilhas. Assim, a restrição nas condições de acesso e de interação com cada um dos complexos, promove o rompimento de uma estrutura ecológica e social, definida pela relação particular que essa população tradicional mantém com seu território. É possível afirmar, então, que esses elementos compõem um campo no qual natureza e sociedade são representadas num universo unitário.